domingo, 13 de setembro de 2009

NIETZSCHE: os poetas mentem demais...


“Desde que conheço melhor o corpo” – disse Zarathustra a um dos seus discípulos – “o espírito é para mim só figurativamente espírito; e todo o “imperecível” – também não passa de figura”.

“Assim já te ouvi falar uma vez”, respondeu o discípulo; “e então adicionaste: ‘mas os poetas mentem demais’. Mas por que disseste que os poetas mentem demais?”.
....
Porém o que te disse uma vez Zarathustra? Que os poetas mentem demais? – Mas também Zarathustra é um poeta...
...
Mas dado que alguém com toda seriedade diga que os poetas mentem demais: terá razão – mentimos demais.
Também sabemos muito pouco e somos maus aprendizes: já por isso temos que mentir.

E como sabemos pouco, gostamos muito dos pobres de espírito, principalmente quando são jovens mulherzinhas.
E cobiçamos até mesmo as coisas que as velhas contam à noite. A isso chamamos o eterno feminino em nós mesmos.
E como se houvesse um acesso secreto ao saber, oculto àqueles que aprendem algo: assim cremos nós no povo e em sua ‘sabedoria’.
Mas todos os poetas crêem no seguinte: que quem deitado na grama ou numa encosta solitária aguce os ouvidos experimentará algo das coisas que se encontram entre o céu e a terra.
E se movimentos delicados os alcançarem, sempre pensam os poetas que a natureza mesma se apaixonou por eles:
E ela se desliza aos seus ouvidos para contar segredos e fazer lisonjas apaixonadas: das quais eles se vangloriam e se envaidecem acima de todos os mortais!
Ah, há tanta coisa entre o céu e a terra com as quais só os poetas se permitem sonhar!
E principalmente acima do céu: pois todos os deuses são figuras de poetas, manhas de poetas!
Em verdade, sempre somos atraídos para cima – isto é, para o reino das nuvens: nestas colocamos nossos fantoches coloridos e os chamamos deuses e super-homens;
pois eles são justo bastante leves para esses assentos! – todos esses deuses e super-homens.
Ah, como estou cansado de todo o inalcançável que se pretende acontecimento! Ah, como estou cansado dos poetas!”

Quando Zarathustra assim falou, zangou-se com ele seu discípulo, mas se calou. E também Zarathustra se calou; e seu olhos se haviam voltado para dentro, como se olhassem para muito longe. Finalmente ele suspirou e tomou fôlego.

“Sou de hoje e de outrora, disse então; mas há algo em mim que é de amanhã e de depois de amanhã e do porvir.
Cansei-me dos poetas, dos velhos e dos novos: Superficiais ele todos são para mim, e mares rasos.
Não pensaram bastante das profundezas: com isso seu sentimento não mergulhou até o fundo.
Alguma volúpia e algum tédio: ainda é isso o melhor das suas reflexões.
Um sopro e um deslizar de fantasmas me parecem todos os seus harpejos; que sabem eles até hoje do ardor dos sons!
Para mim tampouco são bastante puros: turvam todas as suas águas, para que pareçam profundas.
E gostam de se apresentar como conciliadores; mas para mim permanecem mediadores e misturadores e meio isto e meio aquilo, e impuros!
Ah, lancei minha rede no seu mar e quis pescar bons peixes; mas sempre recolhi a cabeça de um velho deus.
Assim ao faminto o mar deu uma pedra. E eles mesmos poderiam vir do mar.
Certo, acham-se pérolas neles: tanto mais, por isso, parecem eles mesmos com duros crustáceos. E, em vez de alma, muitas vezes neles achei lodo salgado.
Aprenderam do mar também sua vaidade: não é o mar o pavão dos pavões?
Mesmo ante o mais feio dos búfalos ele ostenta sua cauda: jamais se cansa de seu leque de prata e seda.
Carrancudo contempla-o búfalo, pois sua alma é mais afim da areia, mais ainda do cerrado e mais de tudo do pântano.
Que são para ele a beleza e o mar e os adornos do pavão! Esta parábola dedico aos poetas.
Em verdade seu espírito mesmo é o pavão dos pavões e um mar de vaidade!
Quer espectadores o espírito do poeta: ainda que sejam búfalos! –
Mas desse espírito cansei-me: e vejo o dia em que ele mesmo se cansará de si.
Já vi os poetas transformados, a dirigir seu olhar contra si mesmos.
Penitentes do espírito vi chegarem: e surgiam dos poetas.”

Assim falou Zarathustra.

De: NIETZSCHE, Friedrich. "Also sprach Zarathustra. Ein Buch für alle und keinen". In: Werke. Vol.2. Org.: K. Schlechta. München: Carl Hansen, 1954, p.381-384.
Trad. e adaptação de Antonio Cícero

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